Amala (2018)
Amala
(2018) é uma escultura em processo. Em algum sentido, entendo que ela se
aproxima do objet trouvé dos
surrealistas. Nesse caso, é importante falar sobre o “acaso objetivo”, conceito
que diferencia os objetos surrealistas dos ready-mades
de Duchamp. Enquanto Duchamp via o acaso como uma estratégia de
despersonalização do objeto, que desvinculava a personalidade do criador da
estrutura do objeto criado, tornando o ato de escolha dos objetos alheios ao
gosto pessoal, Breton, influenciado pelas ideias Freudianas, acreditava que
esse acaso embora fosse ou pudesse ser desconhecido já era esperada.
A noção de acaso objetivo tem origem no fato das
energias do inconsciente funcionarem com propósito oposto à realidade. Ela
prevê que a libido, agindo do interior do indivíduo, dará forma à realidade de
acordo com suas próprias necessidades, encontrando na realidade o objeto de seu
desejo. (KRAUSS, 2007, p.132).
O Segundo Manifesto Surrealista destaca a ideia
de desvirtuar a ordem comum das coisas e subverter a utilidade prática dos
objetos e instrumentos. Um retorno à unidade da percepção e da representação
para reconciliar o interior eo exterior, o objetivo e o subjetivo (BRETON,
1993). A partir de 1930, muitos artistas ligados ao movimento surrealista
produziram objetos, especialmente objetos oníricos (relativos aos sonhos), ou o
que Salvador Dali denominou de “objetos de função simbólica”. (KRAUS, 2007).
Tratava-se de uma categoria de trabalhos, na qual um objeto comum sofre uma
“estranha e perturbadora deformação”. Objeto
Desagradável (de ser usado), 1930,
de Alberto Giacometi, é um exemplo deste tipo de produção. O movimento
Surrealista de fato contribuiu para amadurecer e consolidar um pensamento
estético mais profundo em relação ao uso do objeto. Em seu livro Tendências da Escultura Moderna, Walter
Zannini destaca que o objeto representou para os surrealistas
[...] um campo fértil, capaz de satisfazer parte de
suas necessidades mais vitais na exploração inconsciente e um novo meio de
oposição às forças mecanizadas da civilização (ZANINNI, 1971,pág. 180).
Uma das
primeiras conformações do trabalho Amala
(2018) teve sua ocorrência na exposição Café
com Sal (2018)¹,
a qual traz os resultados poéticos realizados pelos artistas envolvidos em
deslocamentos errantes realizados na região do 4º Distrito de Porto Alegre,
mais especificamente na região próxima à Rua Voluntários da Pátria². No catálogo da
exposição a professora e artista Tetê Barachini fala um pouco sobre as experiências
compartilhadas por nós.
Ao chegarmos à Rua Voluntários da Pátria, esta se
apresenta inóspita e aparentemente desértica. Apenas uma ou outra pessoa aqui
ou ali. Caminhar se faz imprescindível para praticarmos aquele lugar e assim
aprender o seu espaço (Certeau), efetivando a nossa presença no ato da nossa
não permanência. O percurso é extenso. A vida pulsante se apresenta silenciosa
em nosso entorno. Momentaneamente, somos estrangeiros naquela territorialidade
polissêmica. Nosso deslocamento torna-se preguiçoso. Atento. (...) O lugar do nosso
percurso se coloca como um espaço fora de nós, distante, heterogêneo, complexo
e, é preciso se ter consciência de que não vivemos em um vazio no interior do
qual poderíamos situar os indivíduos e as coisas, mas sim, “vivemos no interior
de um conjunto de relações que definem posicionamentos irredutíveis uns aos
outros” (Foucault). Perceber com a experiência da errância urbana contemporânea
(Jacques) que estas relações requerem mais que o exercício de colocar um passo
na frente do outro, pede uma profunda vontade de querer apreender o corpo, o
visível e o dizível. Com nossos passos lentos, tornou-se possível a percepção
daquele espaço no e pelo corpo, através das experiências conscientes e críticas
de cada um dos errantes. Mas para aqueles que vivenciam a rua e nela reconhecem
o seu espaço de pertencimento urbano, éramos em algum sentido apenas corpos
estranhos em movimento. (BARACHINI, 2018, p. 4-5.)
Após esse
percurso coletivo, desenvolvi ainda outros dois deslocamentos, desta vez de
modo solitário e praticando a minha cicloerrância.
No primeiro deslocamento, ocorrido de modo coletivo, não sabia exatamente o que
pretendia obter como resultado, nem como me comportar diante do espaço urbano
em questão. Fixava o olhar próximo ao chão, recolhendo pequenos objetos, tais
como: parafusos perdidos, teclas de computador e até um slide com nomes de escritores. Com eles, gerei algumas imagens que
imprimi sob madeira, juntamente com outros objetos achados em outros momentos.
No entanto, percebi que deveria mudar os meus procedimentos, pois tais objetos
recolhidos, bem como seus desdobramentos enquanto trabalho não correspondiam à
minha expectativa.
Em um novo
percurso, de modo solitário, sobre uma bicicleta, elevei meu olhar procurando
por situações, detalhes arquitetônicos e objetos maiores e mais significativos.
Foi, então, em uma segunda jornada, que encontrei uma mala presa ao topo de uma
grade de um terreno baldio próximo ao meu ateliê.
O encontro com a
mala atribuiu sentido relevante a esses percursos. Apesar desse objeto ser
extremamente interessante por si só, para mim, ele ainda não fazia sentido como
objeto de arte, era talvez um acaso no processo de criação necessitando
complemento. Esse estado de insatisfação me levou ao terceiro deslocamento em cicloerrância.
Desta vez,
procurei uma parte mais movimentada e adensada do 4º Distrito de Porto Alegre,
o núcleo central do Bairro São Geraldo, estabelecendo um perímetro amplo com o
epicentro no cruzamento da Avenida São Pedro com a Avenida Presidente Franklin
Roosevelt. Nesse novo território, meu foco estava nos corpos em movimento.
Pessoas entrando e saindo dos estabelecimentos, caminhando pelas calçadas,
camelôs, etc. Foi então que, em meio a tanto movimento, num recuo de calçada
entre duas casas, notei pernas estaqueadas para fora de um entulho.
O objeto em
questão tratava-se de metade de um manequim praticamente novo. Parecia que
estava à minha espera. Sem pensar duas vezes, retirei o meio-manequim do
entulho e levei até meu ateliê, carregando a peça com uma das mãos e pilotando
a bicicleta com outra. Neste deslocamento por aproximadamente 15 quadras ouvi
os mais diversos comentários e frases, todos feitos por homens, tais como: “Tá levando a namorada pra passear?”, “A
outra metade te visita na quarta-feira, né?!”, “Assim é fácil, fica só com a parte
que não incomoda.”
Chegando ao
ateliê, descarreguei a peça recém-encontrada próxima à mala de couro. Algumas
horas depois – e com algum distanciamento visual –, tive a ideia de unir as
duas peças (a mala e o manequim). Desse ato, surgiu a primeira conformação do
trabalho, o qual intitulei, Amala.
O objeto segue se transformando e
assumindo novas possibilidades de interpretações, tanto como objeto-escultórico
posto em espaços expositivos, como no papel de objeto performático.
Recentemente, por exemplo, tive necessidade de produzir uma foto horizontal
para o catálogo da exposição Café
com sal. As características do espaço expositivo da Planta
Baja, todavia, não eram favoráveis a esse tipo de tomada, fosse pela falta de
profundidade, fosse pela interferência de outros trabalhos expostos no local.
Com essa motivação, levei a escultura para uma cicloerrância, buscando um local favorável a essa tomada horizontal
em algum local do 4º Distrito. Saliento que o próprio ato de transporte da
escultura em uma bicicleta já configurou uma espécie de performance. Na esquina
da Rua Câncio Gomes com a Rua Voluntários da Pátria, ao fundo de uma parede de
pedras, fiz algumas imagens. Durante esse registro, duas moças que “faziam
ponto’’³
no outro lado da rua começaram a interagir comigo e com a escultura através de
breves comentários. Percebi nesse momento que a escultura funcionava como uma
espécie de objeto mediador. A partir desse contato, expliquei que se tratava de
um trabalho de arte e convidei as moças a interagirem com a escultura, ambas
acharam a ideia interessante e de pronto performaram com Amala . Como agradecimento, na semana seguinte retornei ao local e
dei uma cópia da fotografia a cada uma das moças.
Notas:
[1] Café com Sal (2018). Exposição coletiva.
Local: Galeria Planta Baja, Porto Alegre-RS. Curadoria: Tetê Barachini.
Artistas participantes: Andressa Cantergiani, Cristiano Sant Anna, Fernando
Bakos, Lucas Strey, Glaucis de Morais, Luciane Bucksdricker, Marta Montagnana e
Vicente Carcuchinski.
2 Deslocamento realizado em 17/12/2017 como parte
das atividades da Disciplina: Tópico Especial – Deslocamentos e
Posicionamentos. PPGAV-UFRGS.
Pós-graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3 O “Ponto” é aqui
entendido como o local fixo que uma profissional do sexo oferece seus
serviços. Geralmente constituído em locais de pouca circulação de pedestres em
regiões fabris, industriais ou portuárias, permite uma descrição dos usuários
no consumo dos serviços oferecidos, bem como, esconde uma prática socialmente
pouco aceita.
REFERÊNCIAS
BARACHINI,
T. Café com sal. In CANTERGIANI, A.
[et al.] Café com sal. Porto Alegre: UFRGS, 2018. Acesso em: maio/2018.
Disponível em: https://issuu.com/ttbarachini/docs/cafe_com_sal
BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. 4. ed.
Tradução de Pedro, Tamen. Lisboa: Edições Salamandra, 1993.
KAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. Tradução
Júlio Fischer. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ZANINI, Walter. Tendências da Escultura Moderna. São
Paulo: Cultrix, 1971.