Monumento líquido aos passeadores de cachorros
Corpo e cidade podem ser duas grandezas equivalentes. A relação entre ambos acontece por meio das práticas corporais. Cada indivíduo desenvolve seus rituais, suas práticas pessoais e forma própria de existir na cidade. Minha pesquisa artística propõe a identificação de padrões nesses modos de existir na cidade, a partir disso, proponho intervenções artísticas com objetos tridimensionais em espaços urbanos sob a lógica dos monumentos líquidos. Certamente uma referência ao conceito Balmaniano¹ que analisa as transformações e as permanências na sociedade pós-moderna mergulhada na virtualização das relações e do espaço-tempo. Nesses tempos líquidos nada é feito para durar, os afetos se fazem e desfazem, os relacionamentos que demandam tempo para se consolidar desmancham-se com a mesma facilidade que iniciaram em algum aplicativo.
Richard Sennett é um dos autores que bem
trata da correlação entre corpo e cidade. Autor de Carne e Pedra, Sennett
acredita que haja uma relação intrínseca entre corpo e espaço que se manifesta
a partir de temporalidades e formas de contato que podem ser feitas por
aproximações e distanciamentos. Ou seja, carne e pedra se interconectam segundo
certas variáveis como projetos arquitetônicos, sistemas econômicos, culturais e
políticos, acontecimentos e marcos históricos, entre outros. Esta ligação se
refere à capacidade dos espaços urbanos permitirem contatos, movimentos e
agenciamentos corporais. Sua tese é de que, pelo processo de globalização, as
grandes cidades, como Nova Iorque, aboliram o contato corporal e cederam lugar
aos automóveis, às redes virtuais, às velocidades do capital. No mundo
contemporâneo, o corpo se tornou passivo, perdeu sensibilidade submetendo-se à
dominação capitalista e aos meios de comunicação de massa. A experiência física
da velocidade – como o deslocamento através de automóveis, trens, metrôs –
tornou o espaço urbano um mero lugar de passagem, desconectando-o do corpo. “A
condição física do corpo em deslocamento reforça essa sensação de desconexão
com o espaço. Em alta velocidade, é difícil prestar atenção na paisagem”
(SENNETT, 2014, p. 16)². Para o autor,
os espaços urbanos perderam seu caráter associativo e não acolhem mais as
diferenças, tendendo a causar estranhamento e afastamento ao invés de
aproximação. O resultado são ruas e praças vazias ou subutilizadas diante de
seu potencial.
Quando eu tinha meu ateliê instalado no
4º Distrito de Porto Alegre, mais precisamente no bairro Floresta, de certa
forma eu divergia um pouco dessa teoria. As ruas de fato eram desocupadas por
uma parcela da população, segundo Milton Santos³, os homens do tempo
hegemônico, de tempo rápido, essas pessoas muito bem definidas por Sinnet. Entretanto
os homens de tempo lento estavam lá, vivendo a cidade, eram os catadores de
material reciclado, as prostitutas, os andarilhos e sem teto. Lá, as ruas eram
encarnadas por essas pessoas lentas.
Há um ano e meio estou trabalhando em um
ateliê colaborativo no bairro Petrópolis. Bairro de classe média alta, em
franca verticalização. Condomínios completos brotam de grandes áreas recém-loteadas.
Espaços privados que você não precisa sair para ir à academia, playground,
brinquedoteca, salão de festas, sala de jogos e em alguns até um minimercado de
autoatendimento está a sua disposição. Diante de tamanha infraestrutura e
conforto o que poderia levar as pessoas à rua? Entre algumas poucas
possibilidades, durante meus deslocamentos errantes de olhar atento e curioso,
percebi que as necessidades fisiológicas de um cão associado a rígidas regras
de condomínio podem jogar uma pessoa na calçada. Ando pelas ruas do bairro
Petrópolis em diversos horários, fora da região das avenidas e centros
comerciais, quem ocupa o espaço de modo alternado ao longo do dia todo é o
passeador de cachorro. Impelido pela necessidade do seu PET eles vão às ruas,
mas nem todos vivem a cidade. Alguns presos a uma necessidade de produtividade
extrema - Característica evidente dos tempos líquidos – não tiram seus olhos da
tela do smartphone. Em 15 minutos de passeio saem de sua portaria, baixam a
cabeça em direção à tela, levantam novamente a cabeça e pronto. Uma volta na
quadra rende seis e-mails respondidos, 75 likes, 23 stories visualizados e um
feliz aniversário em algum grupo da família. Há! O cão queria fazer coco, será
que fez?
Notas
1. BAUMAN Zygmunt. Modernidade líquida.
Rio de Janeiro Zahar 2001.
2. SENNETT,
Richard. 2014. Carne e pedra – o corpo e a cidade na civilização ocidental. BestBolso:
Rio de Janeiro.
3.
SANTOS, Milton, A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São
Paulo: Hucitec,1996.