A mão de centro
FUKE
Mauro, Sem título – 1992, material: Luva de couro 30x15. Com essas informações
inicio esse ensaio sobre um trabalho do artista Mauro Fuke que compõe o acervo
da pinacoteca da prefeitura. Uma luva de couro do tipo EPI (equipamento de
proteção individual) tão comum em ateliês de escultura, oficinas ou setores da
construção. No entanto, não se trata de uma luva comum, pois esta apresenta
duas opções de uso para o polegar. Um objeto que foge ao seu conceito original
quando retirado dele a funcionalidade e uso normal em favor de uma
subjetividade e abertura da forma. Essa operação artística sobre o objeto
agrega a sua percepção doses de humor que oscila entre o lúdico e o crítico. É
nesse ponto que percebo o potencial discursivo da proposta artística que surge
de uma hibridação de sistemas de produção entre arte e design. Recorre à
familiaridade visual do objeto utilitário, para operar alterações sutis
atribuindo doses de ambiguidade que não limita a leitura em um único
significado simbólico, mas amplia nos fornecendo pistas para possíveis e múltiplas
leituras em potencial.
Em
muitos aspectos essa proposição de Mauro Fuke dialoga com as imagens da série
“Objetos Imaturos” de Rubem Grilo (1946). Uma série de pequenas xilogravuras de
objetos “equivocados”. Contudo, entre outros aspectos a originalidade do
trabalho de Fuke está na realização do objeto em toda sua potencial material. A
luva de couro não é uma projeção, mas um objeto real no espaço. Uma luva de couro
com dois polegares. Após a superação do estranhamento visual comecei a imaginar
sentidos para o objeto. Nesse tipo de utilitário o polegar indica a mão que
deve utilizar o objeto, mas nesse caso indefere, pois ambas as mãos cabem
confortavelmente no uso. No campo político em tempos de polarizações podemos
dizer que não se trata de um objeto ideologicamente definido, pois serve tanto
à direita quanto à esquerda. No plano corporal simplesmente serve às mãos. E no campo da arte serve à indagação como
todo bom trabalho artístico.
Com objetivo de criar uma proposta original que dialogue com esse trabalho de acervo, tentei relacionar questões desse objeto ao corpo humano. Para tanto, produzi cópias em gesso das minhas próprias mãos. Cortei pedaços de ambos modelos direito e esquerdo e remontei-os em uma única peça na tentativa de criar a mão que vestiria de modo ideal a luva de Fuke. A relação que percebo entre os trabalhos remete a referencias do surrealismo. Ao tratar o corpo de modo fantástico ou na estética disfuncional do objet trouvé. O Segundo Manifesto Surrealista destaca a ideia de desvirtuar a ordem comum das coisas e subverter a utilidade prática dos objetos e instrumentos. Um retorno à unidade da percepção e da representação para reconciliar o interior e o exterior, o objetivo e o subjetivo (BRETON, 1993). A partir de 1930, muitos artistas ligados ao movimento surrealista produziram objetos, especialmente objetos oníricos (relativos aos sonhos), ou o que Salvador Dali denominou de “objetos de função simbólica”. (KRAUS, 2007). Tratava-se de uma categoria de trabalhos, na qual um objeto comum sofre uma “estranha e perturbadora deformação”. Objeto Desagradável (de ser usado), 1930, de Alberto Giacometi, é um exemplo deste tipo de produção. O movimento Surrealista de fato contribuiu para amadurecer e consolidar um pensamento estético mais profundo em relação ao uso do objeto. É nesse gancho histórico que encontro inspiração e sentido para desenvolver essa proposta artística.
Referências
BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. 4. ed.
Tradução de Pedro, Tamen. Lisboa: Edições Salamandra, 1993.
KAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. Tradução
Júlio Fischer. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
GRILO, Rubem. Arte menor: xilogravuras. Tradução
Christopher Peterson; texto Paulo Herkenhoff. Rio de Janeiro: Centro Cultural
Banco do Brasil, 1996.